Nessa trajetória com o grupo de
estudos do LEPED sou convidada a compartilhar com os leitores e ouvintes uma
experiência que se encaixa e relaciona-se com tudo aquilo que me chamou atenção
nas leituras que a disciplina “Seminário I – Escola para todos” propôs.
Trata-se de ser agenciada não
somente pelas concepções dos teóricos, os quais tivemos discussões a partir de
suas obras – nossa matéria-prima - mas também pelas contribuições de todos que
participaram desses encontros e que de uma maneira ou outra contribuíram com
suas ideias. Fui e estou provocada a buscar novas formas de rever a escola.
Escola, uma instituição que é
parte da minha vida, na qual eu vivo diariamente e compartilho das conquistas e
dos desafios enfrentados dia após dia. Nesse cotidiano de lutas, muitas pessoas
compõem parte de um quadro que em diferentes momentos é revisitado, com
pinceladas novas, cores diferentes e ajustes moldados aos sentimentos
momentâneos do artista que o trabalha. Esse artista muitas vezes sou eu mesma,
mesmo inconsciente disso, e quando o novo acontece, penso que as reações
ocorram individualmente por meio das ideias e das criações.
Para ilustrar quero compartilhar
essa história...
Uma mãe chegou à escola a procura
do diretor, solicitou uma vaga na instituição para seu filho de 10 anos. O
diretor fez alguns questionamentos sobre a criança e seu comportamento. A mãe
omitiu da escola qualquer tipo de problema, de qualquer natureza.
A vaga foi concedida, logo no
primeiro dia de aula a criança teve que ser levada de volta para sua casa, não
sei qual foi o motivo. No segundo dia, novamente o aluno deveria ser levado
para casa, como assim o foi. Não entendi muito bem o que estava acontecendo,
que situação era vivida por aquele menino. Segundo dia de aula, segundo dia
para casa mais cedo. Fora-me solicitado ligar requerendo monitoria para o aluno
em órgão responsável. Alguém havia dito para o diretor que a criança era
“problemática”.
Compreendi a partir das leituras,
das contribuições de Foucault e discussões com o grupo, que se eu quiser mudar
algo nas relações de poder dentro da
escola, devo jogar. É assim que venho fazendo, buscando linhas de fuga para a
resolução dos problemas que constantemente surgem, mas sou consciente de que
minhas ações também refletem determinado tipo de poder do qual disponho, por
isso vejo a necessidade de me preocupar e estar atenta, uma vez que serei
responsável por aquilo que eu possa produzir no outro.
E mesmo considerando a escola
como uma instituição que não é livre, uma vez que compõe parte de um sistema
nacional de educação e que é mantida sob regras e moral, entendi que somente
posso começar a modificar algo, ou alguma situação, dentro daquilo que é
possível, nesse lugar onde estou.
Passando despercebidamente por
cima das determinações liguei para a escola anterior do aluno para tentar saber
o que havia acontecido. Descobri que a criança apresentava três diagnósticos e
que na outra escola era acompanhada individualmente por uma monitora, sendo que
fora convidado a retirar-se da instituição.
Nem sei dizer se fiquei tão
surpresa, mas sei dizer que fiquei revoltada. Estavam produzindo um determinado
modo de existência insuportável para essa criança dentro da instituição
escolar. Ele nem mesmo fazia parte da sala de aula! Suas aulas eram feitas em
local diferente e isolado, somente pelo aluno junto da monitora.
Considerando a instituição
escolar a partir e sob o prisma que esse grupo de estudos possui, noto que
diferentemente de muitos outros grupos de pesquisa, nós não vemos uma estrada
que leva a busca por melhorias na qualidade do ensino pavimentada de concreto
batido com teorias e medidas de ações prontas, formatadas, prescritas e
determinadas, mas sim uma estrada construída sem pavimentos embrutecidos, com
materiais que permitem serem trocados, repensados, revestidos, reformulados,
renovados pela criação de cada ser que nela caminha, professor, aluno, gestor,
toda equipe que vive intensamente essa busca incessante.
Dessa perspectiva entendi que era
preciso agir.
“Ele não tem jeito!” Essa foi a fala da
coordenadora para mim. Ele me agrediu fisicamente – ela disse. Precisa tomar
remédios e a mãe não administra. Bate e xinga professores e alunos e a
mãe protege e endossa o que faz. Já o encaminhamos para o Conselho Tutelar
muitas vezes.
Atônita, pensei: “Ele tem 10 anos
apenas”. Desliguei o telefone sem saber o que fazer. Disse para o diretor que
tínhamos um problema e precisávamos resolver. A essa altura a criança já havia
ido para casa.
O dia terminou e mesmo em casa
não consegui parar de pensar naquele ser humano pequeno e excluído por todos à
sua volta. Era preciso encontrar formas de dessubjetivar. Mas como?
Na oportunidade. E essa oportunidade não deveria ser aguardada, mas sim
criada.
Guattari nos chama atenção para o
fato de aceitarmos o mundo a partir de determinados padrões estabelecidos sem
questionamentos e esse aspecto foi muito caro para mim, pois não poderia fazer
mais do mesmo, a situação não poderia ser a mesma que ocorria na outra escola.
Não tenho aqui a pretensão de comparar escolas e pessoas, mas sim pretendo
refletir sobre minha própria atuação profissional e pessoal diante de uma
problemática escolar cotidiana. Questionando sobre como renovar, modificar e
atuar. Produzindo meu próprio estilo em benefício do outro, cuidando do outro e
consequentemente de mim mesma.
Cheguei à escola e pedi permissão
para a vice-diretora para tentar mudar o rumo daquela história, resgatar
novamente a confiança daquela criança nas pessoas e na instituição escola. Eu
disse que precisávamos mudar o rumo daquela situação, mas não sei se daria
certo, mesmo porque, os contatos telefônicos entre professores de uma escola para
outra para contar e falar sobre o aluno já estavam acontecendo, fato que fugia
ao nosso controle. A criança estava trazendo um rótulo dado na outra escola e
os próprios profissionais da nova instituição estavam disseminando este rótulo.
Era preciso derrubar essa barreira, retirando das páginas anteriores, segundo
Deleuze (2002; p. 209) “as imagens e as ideias feitas que constituem outros
tantos obstáculos à emergência da obra”.
Chamei-o para conversar, pedi a
companhia da vice. Falamos por quase duas horas e oportunizamos a ele um
momento para que se expusesse. Fiquei com um nó na garganta. De imediato tomei
providências para que suas limitações físicas passassem a não ser tamanho
impecilho em sala de aula, porém tudo
com o apoio do próprio aluno, que por
sua vez nos contou como se sentia diante daquela situação toda. Peguei nas pequenas mãos dele e
disse que poderia contar conosco e que escreveríamos juntos uma nova história,
que ele deveria ser feliz, que eu não me importava se ele iria ou não aprender
os conteúdos, mas que o importante seria de que ele se sentisse bem ali naquele
ambiente. Tive apoio da vice em tudo aquilo que propus.
Não apenas passei por esse
momento, essa experiência, mas a vivi, ela me afetou, me tocou, assim como
pontua Larrosa. Nesse caso, se fazia necessário, me apropriando do conceito de
Guattari, de um “engajamento” não somente meu, mas de todos que atuam nesta
escola, todos que estavam em posição de intervir positivamente. Decididamente
chamei todos os profissionais da escola, professores polivalentes, professores
especialistas, inspetores, entre outros, além de falar com todo o grupo de
professores, mesmo os que não tinham aula na sala dele e contei a todos a
experiência ressaltando a necessidade de acolhida e a forma de todos lidarem com suas limitações
físicas. Agi com a oportunidade que tive, ou que criei.
A reação diante esse fato reflete
a forma de ação destacada pelo professor Silvio Gallo, atuar nas brechas, aproveitando as oportunidades,
essa é a educação menor que acontece ali todos os dias dentro da escola, de
cada sala de aula, longe do sistema e da imposição legislativa. Mesmo assim,
chamamos a atenção das instâncias superiores pela maneira como atuamos, uma vez
que perceberam resgatadas a felicidade e o prazer em estar na escola por esse
aluno.
Hoje, mais ou menos dois meses e
meio após o início dessa história eu ganho um abraço quase todos os dias na
hora da entrada das turmas. Essa criança agora tem amigos, tem apoio de todos
na escola e a cada dia trilha por esse novo caminho revestido pelo respeito.
Da concepção de Deleuze posso me
apropriar do conceito de “renovação”, destacando que esse deve ser aplicado aos
processos educacionais, a fim de que haja renovação da mentes, das práticas,
não atuando frente às diferenças, mas sim nas diferenças, de modo a considerar
a todos, dando abertura às possibilidades da busca da originalidade de cada um
por meio das discussões, pois por meio de conceitos como este é que conseguimos
construir respostas para os problemas.
Minha contribuição é pequena,
diante da grandeza dessa causa, minha formação e transformação são notáveis
diante das trocas que esses encontros promoveram, minha satisfação é pessoal
diante da compreensão de que sou, tomando das palavras de minha professora
Maria Teresa, uma despretenciosa ensinante, mais segura de que posso criar,
recriar, ver e rever, pensar e repensar sem temor nas incertezas, na certeza
apenas de que sou uma eterna aprendente.